Política como fé e prática: a relação do cristão com a política - Parte 1
- João Vitor
- 26 de set. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 20 de set. de 2023
O que a Bíblia diz sobre política

Estamos nos aproximando das eleições de 2022, e este tem sido um período cada vez mais conturbado no nosso país. Com o aumento do acesso à informação e da polarização, os ânimos de todas as pessoas têm ficado mais acirrados. Se tivéssemos alguma garantia de que nossas discussões presenciais e virtuais são motivadas por boas informações e reflexão refinada, com certeza poderíamos ficar mais tranquilos. Contudo, infelizmente não parece ser este o caso. Quando não somos levados a opinar pela fake news mais fresquinha que acabou de chegar naquele grupo de WhatsApp, nossos debates se tornam mais feios que briga de foice devido à crueza, superficialidade ou ao erro franco de nossas ideias.
A coisa fica ainda mais complicada quando colocamos o cristão na equação, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, a parcela da população brasileira que se autodenomina “evangélica” — e, concomitantemente, o eleitorado evangélico — tem crescido de modo muito significativo nas últimas décadas. Nessa história, nós somos tanto os interessados na política quanto o alvo de interesse — e, por isso, da propaganda — dos candidatos a cargos políticos. Em segundo lugar, o cristão tem a clara responsabilidade bíblica de buscar e zelar pela verdade e pelo amor. Isso significa, no contexto das discussões políticas contemporâneas, opinar e conversar a partir de argumentos ponderados e bem embasados e com a mansidão e humildade modeladas pelo nosso Mestre.
Foi para contribuir com os cristãos nesse esforço que esta série de artigos foi pensada. A ideia é falarmos um pouco tanto sobre princípios básicos da relação do cristão com a política, como o seu envolvimento nesse campo, as ideologias e o papel do Estado, quanto sobre aspectos mais práticos dessa relação, como o voto e como buscar informações de qualidade. Estes textos foram elaborados a partir das anotações feitas para uma conversa entre os jovens da União de Mocidade Presbiteriana (UMP), num evento intitulado “Política como Fé e Prática”, e das ideias compartilhadas durante a discussão. Nossa oração e desejo é que estes apontamentos edifiquem o leitor e a leitora, produzindo, como alguém já disse, mais luz que calor.
Todos os textos bíblicos foram extraídos da Nova Almeida Atualizada (NAA), a menos que se indique o contrário.
Parte 1: O que a Bíblia diz sobre política
Vamos começar do começo: o que a Bíblia diz sobre política? Quando vamos atrás do ensinamento bíblico acerca de algum tema, é sempre útil visualizarmos a coisa toda a partir da tríade criação, queda e redenção. A proposta aqui não é fazer uma teologia bíblica completa da política, mas investigar rapidamente, a partir de uma cosmovisão bíblica, um conceito fundamental para o pensamento político: a ideia de poder.
Política tem a ver, sobretudo, com poder. Ela tem a ver, sim, com a justiça e com o bem comum, mas, antes disso, tem a ver com o modo como usamos o poder e como a correlação de forças entre indivíduos e grupos conduz a sociedade a uma determinada direção. Afinal de contas, para promover a justiça em favor do bem comum, é necessário poder.
Quando falamos em poder, não estamos falando apenas de força militar ou do capital político necessário para legislar e aprovar determinadas leis. De maneira geral, e mais importante do que isso, estamos falando do poder necessário para a condução da cultura. A ideia de cultura e sua relação com o poder é particularmente importante aqui, porque é em Gênesis 1.28, o versículo-chave acerca do famoso “mandato cultural”, que começamos nossa jornada para entender o lugar do poder na narrativa bíblica.
Aqui, lemos que “Deus os abençoou e lhes disse: Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e sujeitem-na. Tenham domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.” Deus cria todas as coisas e dá ao homem poder para dominar a terra e sujeitá-la. O ser humano, como imagem e semelhança de Deus, tem a função de agir na criação como seu vice-regente. O poder conferido a ele deveria ser exercido tomando como ponto de partida e exemplo o poder benevolente do próprio Senhor. Vemos a liderança harmônica do homem na cultura quando Deus apresenta os animais criados a Adão para que este lhes desse nomes (Gn 2.19-20).
Aprendemos, portanto, logo de início, que o poder é algo bom, porque foi criado por um Deus bom, entregue com um propósito bom a uma criatura criada originalmente boa. Independentemente do que aconteça a partir daqui (e sabemos que algo vai acontecer), o cristão não pode considerar o envolvimento com a política como algo inerentemente mal. Na tarefa de cuidar e desenvolver as potencialidades latentes na criação de Deus, o ser humano deveria não só se valer do poder de criar e influenciar a cultura — através de artefatos, instituições, normas etc. —, mas fazê-lo de modo alegre, considerando tal ordenança um privilégio.
No entanto, sabemos que o pecado entrou no mundo. Deus proíbe o homem de comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.17). Apesar de ter todas as árvores do jardim à sua disposição (Gn 2.16), Adão e Eva cobiçam a única árvore que estava fora do seu alcance (Gn 3.6). Eles escolhem, com isso, dar ouvidos à voz da serpente, que sugeriu um atalho para alcançar a sabedoria e o conhecimento (Gn 3.1-5), e passam por cima do modo ordenado por Deus de fazê-lo, isto é, através da obediência e temor a ele (Pv 1.7). Em tudo isso, o ser humano rompe com a fonte real e inesgotável de poder para cumprir o mandato cultural, colocando-se no lugar de Deus sem, contudo, ter em si mesmo os atributos divinos.
O pecado, após entrar no mundo, corrompe todas as coisas, inclusive o exercício do poder. Vemos isso claramente nas consequências e acontecimentos pós-queda. Homem e mulher se tornam envergonhados e temerosos (Gn 3.7-10). Aqueles que exercem alguma função de autoridade sabem como é difícil exercê-la sem a confiança e a segurança para tanto. Além disso, homem e mulher passam a se isentar de responsabilidades (Gn 3.12-13), o oposto exato do que se espera de alguém que precisa exercer poder para o bem dos outros.
A corrupção do poder fica ainda mais óbvia nas maldições impostas por Deus como resultado do pecado. A inimizade entre a serpente e a mulher (Gn 3.14-15), embora tendo um significado teológico mais profundo, retrata claramente a quebra da harmonia entre regentes e regidos. Os obstáculos à tarefa de cuidar e desenvolver a criação também aparecem na maldição de Deus ao homem (Gn 3.17-19), uma vez que o trabalho (algo que também foi criado bom) passa a ser ingrato. O trabalho de parto da mulher também retrata esse sofrimento, e a maldição a ela é completada com a garantia de que o seu marido passaria a governá-la (Gn 3.16). Todos conhecemos as consequências nefastas desse governo nos dias de hoje.
O episódio da queda, porém, é apenas o começo. As coisas começam a ir de mal a pior a partir daí, refletindo, de um modo de outro, o poder corrompido que se tornou a maldição da humanidade. Logo após Adão e Eva serem expulsos, ocorre o primeiro fratricídio, entre Caim e Abel (Gn 4.1-16). Algumas gerações depois, Lameque compõe e entoa a primeira canção, que, pasmem, é uma ode à violência e à vingança (Gn 4.23-24). A maldade cresceu de tal modo que Deus decidiu por bem mandar o dilúvio como forma de julgamento (Gn 6.1-9.19). Mas isso de nada adiantou, pois o ser humano volta usar o poder de modo pervertido e arrogante, agora na construção de “uma torre cujo topo chegue até os céus”, com o objetivo de tornarem o próprio nome “célebre” e de não serem “espalhados por toda a terra”, numa afronta clara à ordem de Deus de encher a terra (Gn 11.1-9). Desde que o pecado entrou no mundo o poder é usado para o favorecimento dos poucos e favoritos, e não para a promoção do bem para todos.
Na história de Israel propriamente dita, também encontramos o mesmo padrão. Deus reitera constantemente seu mandato tanto no chamado de Abrão (Gn 12.1-3) quanto na comissão de Israel (Êx 19.4-6), mas desde os seus primórdios o povo de Deus falhou miseravelmente em cumprir os desígnios dele em favor de um governo benevolente e santo para a sua criação e para a sociedade, tanto de Israel, quanto das outras nações. Em contraste flagrante, a história da nação israelita termina com reis cada vez mais violentos (a ponto de Manassés queimar o próprio filho como sacrifício às suas divindades, 2 Rs 21.6) e opressores, ensejando a denúncia fervorosa dos profetas não só contra a idolatria e a apostasia, mas também contra todo o mal social que as acompanha (Is 58).
Em resumo, por causa do pecado, o poder cultural que o ser humano detém passa a ser exercido de forma tímida, insegura, temerosa, irresponsável, opressiva, inconsequente, tirana, injusta e destrutiva. Uau. Aqui está a raiz de tantas coisas que vemos na política de hoje e que nos causam perplexidade, aversão e, talvez na maioria das vezes, asco. Não apenas na política, mas, insisto, na cultura como um todo. Cada área da vida — famílias, igrejas, escolas, hospitais, mídia etc. — tem sua “política”, isto é, suas negociações de poder que, por serem conduzidas por seres humanos decaídos, resultam em dor e tristeza, geralmente para aqueles que desfrutam de menos poder. Não surpreende que tantos irmãos encham a boca para dizer que o cristão não deve se envolver com a política.
Mas espere, porque a história não acabou. Chegamos, finalmente, em Jesus, o próprio Deus encarnado, que veio a este mundo para nos libertar da escravidão do pecado e para demonstrar como o governo da criação deve ser, de fato, conduzido. Devido à ênfase da Reforma Protestante no conceito forense de justificação, segundo o qual Cristo nos substituiu penalmente no tribunal de Deus, carregando sobre si a nossa condenação, podemos acabar perdendo de vista o fato de que Jesus veio também para cumprir o que Deus esperava do ser humano. Como o segundo Adão (Rm 5.11-18), Cristo, na verdade, é o Adão que “deu certo”, demonstrando o que é o ser humano na plenitude da sua função como vice-regente da criação. Se o primeiro casal falhou em exercer o poder concedido a ele de forma agradável a Deus, em Jesus, através da sua obediência, esse poder é redimido.
Qual é a natureza desse caráter redimido do poder? Em primeiro lugar, Cristo, como a imagem do Deus Criador, é a fonte real do poder (Cl 1.15). Como na criação, a redenção do poder passa por recolocarmos o próprio Deus, agora na pessoa do Filho, no centro dos nossos esforços para conduzir a sociedade, sujeitando e dominando a terra. No período do “já, e ainda não”, não existe política, justiça e promoção do bem comum fora de Cristo. Em segundo lugar, o modelo estabelecido por Jesus para o exercício do poder político é muito peculiar. Como demonstra o hino cristológico utilizado por Paulo em Filipenses 2.5-11, é um poder que é exercido ao abrirmos mão dele. Testemunhando de forma veemente contra a maneira pela qual o poder fora exercido até então, e continua sendo exercido até hoje, a encarnação e a morte de Jesus transparecem humildade, mansidão, responsabilidade, cuidado, benevolência e amor, características do verdadeiro poder divino.
Teremos mais a falar sobre isso no próximo texto. Por ora, o ponto crucial é: a Bíblia coloca o poder político e cultural num lugar de destaque, não pelo poder em si, mas por causa daquele que é a fonte absoluta desse poder. Deus cria o mundo e continua sustentando sua criação, apesar de não poder contar com a fidelidade dos seus cooperadores. Embora profundamente maculado e corrompido pelo pecado, o poder cultural continua sendo a maneira pela qual Deus comanda o mundo através dos seus vice-regentes, e o mandato cultural continua em voga até hoje. O que nós precisamos não é de menos política ou de menos cristãos envolvidos com a política, mas de uma compreensão profunda e biblicamente informada do que Deus esperar de nós como seus embaixadores. Essa compreensão, em sua essência, nos levará a Cristo como aquele que redime o poder, derrotando a corrupção que o afligia e estabelecendo o caminho o qual nós mesmos devemos trilhar para sujeitar e dominar toda a terra para a glória de Deus.
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