Política como fé e prática: a relação do cristão com a política - Parte 2
- João Vitor
- 27 de set. de 2022
- 10 min de leitura
Como o cristão deve se envolver com a política

Estamos nos aproximando das eleições de 2022, e este tem sido um período cada vez mais conturbado no nosso país. Com o aumento do acesso à informação e da polarização, os ânimos de todas as pessoas têm ficado mais acirrados. Se tivéssemos alguma garantia de que nossas discussões presenciais e virtuais são motivadas por boas informações e reflexão refinada, com certeza poderíamos ficar mais tranquilos. Contudo, infelizmente não parece ser este o caso. Quando não somos levados a opinar pela fake news mais fresquinha que acabou de chegar naquele grupo de WhatsApp, nossos debates se tornam mais feios que briga de foice devido à crueza, superficialidade ou ao erro franco de nossas ideias.
A coisa fica ainda mais complicada quando colocamos o cristão na equação, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, a parcela da população brasileira que se autodenomina “evangélica” — e, concomitantemente, o eleitorado evangélico — tem crescido de modo muito significativo nas últimas décadas. Nessa história, nós somos tanto os interessados na política quanto o alvo de interesse — e, por isso, da propaganda — dos candidatos a cargos políticos. Em segundo lugar, o cristão tem a clara responsabilidade bíblica de buscar e zelar pela verdade e pelo amor. Isso significa, no contexto das discussões políticas contemporâneas, opinar e conversar a partir de argumentos ponderados e bem embasados e com a mansidão e humildade modeladas pelo nosso Mestre.
Foi para contribuir com os cristãos nesse esforço que esta série de artigos foi pensada. A ideia é falarmos um pouco tanto sobre princípios básicos da relação do cristão com a política, como o seu envolvimento nesse campo, as ideologias e o papel do Estado, quanto sobre aspectos mais práticos dessa relação, como o voto e como buscar informações de qualidade. Estes textos foram elaborados a partir das anotações feitas para uma conversa entre os jovens da União de Mocidade Presbiteriana (UMP), num evento intitulado “Política como Fé e Prática”, e das ideias compartilhadas durante a discussão. Nossa oração e desejo é que estes apontamentos edifiquem o leitor e a leitora, produzindo, como alguém já disse, mais luz que calor.
Todos os textos bíblicos foram extraídos da Nova Almeida Atualizada (NAA), a menos que se indique o contrário.
Parte 2: Como o cristão deve se envolver com a política
No último artigo, falamos sobre como compreender o poder político à luz da narrativa bíblica de criação, queda e redenção. Para resumir e complementar a discussão, tomo emprestado os conceitos de estrutura e direção conforme propostos por Albert M. Wolters em A criação restaurada. Em linhas muito gerais, estrutura se refere à natureza das coisas criadas como sendo boas por terem sido criadas por um Deus bom que considera sua criação muito boa (Gn 1.31). Direção, por sua vez, refere-se “ao desvio pecaminoso dessa ordenança estrutural [queda] e conformidade renovada a ela em Cristo [redenção]” (p. 87-87). No que diz respeito ao poder, vimos que ele foi criado por Deus para o bom propósito de conduzir e desenvolver (inclusive culturalmente) sua criação através das suas imagens atuando como vice-regentes, mas que foi corrompido pelo pecado, passando a ser utilizado numa direção apóstata que resulta em violência, opressão e injustiça. Finalmente, o poder foi redimido em Cristo Jesus, o qual nos capacita a retomarmos o projeto criacional exposto no mandato cultural.
Quando pensamos especificamente no modo como o cristão deve se envolver na política hoje, o ponto de partida deve ser justamente este: Deus se tornou rei em Cristo. Essa ideia (trabalhada profundamente por N. T. Wright) tem importância especial no nosso assunto porque a categoria de “rei” é eminentemente política. Quando os apóstolos chamavam Jesus de “Senhor” (1Co 12.3; 2Pe 3.18), eles não estavam referindo-se a ele como “chefe”. A palavra em grego utilizada por eles, kyrios, era a mesma palavra utilizada para se referir a César. Chamar Jesus de “Senhor”, portanto, era uma proclamação política da mais alta importância, pois Jesus é o verdadeiro “César” (At 17.6-7) e é quem possui a verdadeira autoridade, tanto no céu como na terra (Mt 28.18, Cl 1.16).
O fato de Jesus ser o rei que já reina tem implicações práticas importantíssimas. O envolvimento do cristão na política, mesmo sem participar ativamente de nenhum governo ou processo decisório nas esferas públicas, parte da necessidade de declarar o senhorio de Cristo sobre toda a criação e a vinda do reino de Deus. Se Jesus reina, mas é possível que o poder seja exercido numa direção contrária a ele, então não existe neutralidade na política. Esta é a aplicação do conceito de antítese na política: todos os cidadãos estão trabalhando ou a favor do verdadeiro rei, ou contra ele (Lc 11.23). O papel dos cristãos é proclamar o reino de Deus (no sentido de sua soberania abrangente) e exercer o ministério da reconciliação (2Co 5.18-20) na política.
Inclusive, a palavra original para igreja, ekklesia, era usada para se referir à assembleia das pessoas que se reuniam para decidir os rumos da pólis, de onde vem a palavra política. Assim, a vida pública é inescapável ao cristão:
“O público é uma dimensão ou aspecto da vida humana, aquele que envolve questões e instituições relativas ao bem de todos, o bem comum. O público é a vida vista como a ‘vida em comunhão’ na sociedade. Correspondentemente, a fé pública é a fé preocupada com a modelagem responsável da nossa vida comum e do nosso mundo comum. Cada parte da vida tem um lado público. [...] Cada um de nós vive uma vida pública porque todas as vidas têm uma dimensão pública que as atravessa. [...] Então, não é só que qualquer um e todos podem se engajar na vida pública, todos nós inevitavelmente fazemos isso” (Miroslav Volf, citado por Pedro Dulci em Fé cristã e ação política, p. 30).
Contudo, isso não significa que o cristão deve se envolver necessariamente com a política-partidária ou com o Estado. Um equívoco comumente encontrado hoje nas discussões políticas entre cristãos é a ideia de que os problemas da nação serão resolvidos por meio do controle do governo e não através do testemunho cristão na cultura como um todo. O objetivo de vida mais abrangente para alguns é a formação de uma nação cristã, pois “feliz é a nação cujo Deus é o Senhor” (Sl 33.12). No entanto, extrair desse versículo a conclusão de que o Brasil só será uma nação feliz quando for uma nação cristã é má hermenêutica. Os escolhidos de Deus hoje não são mais uma nação no sentido étnico ou geopolítico, mas a própria igreja, chamada por Pedro de “nação santa” (1Pe 2.9). Como Jonathan Leeman expressa com muita propriedade: “A manifestação política mais poderosa da igreja é o evangelho. E o testemunho político mais poderoso da igreja é ser igreja. Há mais poder político no evangelho e em ser igreja do que em eleger um presidente, tomar posse como juiz da Suprema Corte, ou até mudar uma constituição.”
Essa postura de entregar ao Estado um mandato que foi dado aos cristãos individualmente e à igreja, muito influenciada pelas “teologias de domínio” gestadas no contexto norte-americano, é, francamente, uma faceta da idolatria ao Estado, à esquerda e à direita. Precisamos tomar cuidado para não confundir influência cristã na sociedade com dominação cristã na política. O modo de influenciar o comportamento das pessoas, e, a partir daí, o país, não é primordialmente através de “leis cristãs”, mas através do testemunho. Paul Freston amalgamou muito bem essa ideia no título de um de seus livros: “Religião e política, sim. Igreja e Estado, não!”
Como mencionamos no artigo passado, Jesus Cristo é quem modela cabalmente como o testemunho cristão na sociedade em favor de seu verdadeiro rei deve ser feito. Podemos ver isso em três textos do Novo Testamento. O primeiro é o hino cristológico reproduzido por Paulo em Filipenses 2.5-11. A beleza desse poema é tão estonteante que me vejo obrigado a reproduzi-lo na íntegra:
Tenham entre vocês o mesmo modo de pensar de Cristo Jesus, que, mesmo existindo na forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus algo que deveria ser retido a qualquer custo. Pelo contrário, ele se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se semelhante aos seres humanos. E, reconhecido em figura humana, ele se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.
Perceba o movimento que Paulo descreve aqui. Cristo Jesus existia como o próprio Deus antes da sua primeira vinda. Tendo todo o poder, entretanto, ele se esvaziou voluntariamente desse mesmo poder. E foi somente depois da sua humilhação e morte vexatória que o Filho passa para o seu estado de exaltação e conquista um nome que está acima de todos os nomes, inclusive daqueles que tem o maior poder humanamente imaginável. A ordem consiste em poder, esvaziamento, humilhação e exaltação. A postura que muitos cristãos têm assumido ultimamente reflete muito mais a conduta de déspotas e tiranos ao longo da história: abraçar as duas pontas do processo e ignorar (ou mesmo zombar) os dois passos intermediários:
Uma das grandes ironias da história do cristianismo é que os seus líderes constantemente caíram ante a tentação do poder [...] muito embora continuassem a falar no nome de Jesus, que não se apegou ao seu poder divino, mas esvaziou-se a si mesmo e tornou-se como um de nós (Henri Nouwen).
O segundo texto que veremos mostra que digno de pena e zombaria são, na verdade, aqueles que se apegam ao poder. Em Colossenses 2.15, lemos: “E, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando sobre eles na cruz.” Ao beber do cálice que lhe havia sido designado e entregar sua vida de bom grado, Jesus tira as armas e armaduras dos poderes da nossa era, expondo-os à vergonha.
O que causa estranheza é que esse desprezo público ocorreu quando nosso Senhor triunfou sobre eles na cruz. Ora, mas a cruz não era um dos sinais mais escancarados de vergonha e humilhação pública? A sentença de morte na cruz era vista com espanto não só pelos romanos, mas também pela mentalidade judaica (Gl 3.13). Em Hebreus 12.2, vemos a mesma suposição, quando o autor fala que Jesus, “em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, sem se importar com a vergonha.” Como que um dos atos mais vilipendiosos da história, a “rude cruz que se erigiu”, passou a ser considerado por Paulo como algo tão grandemente exaltado a ponto de humilhar, na verdade, as principais autoridades deste século?
Caminhe um pouco mais comigo, pois estamos quase lá. No terceiro e último texto, 1 Coríntios 15.24-26, descobrimos que Jesus, já “no ofício”, continuará reinando até finalmente, de novo com a humildade e submissão que faz parte do seu caráter, entregar o reino ao Pai. Nesse processo, Jesus colocará todos os inimigos debaixo dos seus pés, aniquilando de uma vez por todas todo principado, potestade e poder. Lemos, então, que o último inimigo a ser destruído é a morte.
Por que isso é relevante? Deixe-me dar uma pista. Henrique VIII, rei da Inglaterra de 1509 a 1547, executou entre 57.000 e 72.000 pessoas durante seu reinado. Calígula, imperador de Roma de 37 d. C. até 41 d. C., passou para a história por colocar pessoas comuns contra animais selvagens durante os jogos nas arenas romanas. Leopoldo II, rei da Bélgica de 1865 a 1909, que ficou conhecido como “O Carniceiro do Congo”, foi responsável pela morte de milhões de pessoas no país africano. Genghis Khan (1162-1227), primeiro Grande Khan do Império Mongol, foi creditado pela morte de 10 a 15 milhões de pessoas, numa época em que a tecnologia militar não havia avançado o suficiente para matar tantas pessoas de uma só vez.
Você consegue ver aonde eu quero chegar? Estes, e muitos outros, foram reis famosos por se valerem dos métodos mais brutais e violentos já conhecidos para atingir seus objetivos. A morte, ou, pelo menos, a ameaça de morte, sempre foi considerada o instrumento mais eficaz à disposição de um rei para iniciar e consolidar seu reino. Esse padrão não mudou, e eu não estou falando apenas dos regimes totalitários de Hitler, Stalin, Mao Tsé-Tung e Pol Pot, dos regimes ditatoriais no Brasil e em outros países da América Latina ou das “democracias” repressivas e autoritárias que ainda existem. Estou falando das nossas democracias liberais modernas. Quando vemos a economia sendo um fator de tanto destaque na escolha de um candidato, ou medidas populistas se valendo de programas de transferência de renda aos pobres como plataforma de projeção política, a conclusão é que o medo da morte ainda nos cerca e é capitalizado nas mãos das autoridades para o favorecimento próprio.
Ao nos depararmos com a forma pela qual Jesus escolheu criar e estabelecer seu reino e o compararmos com as autoridades políticas ao longo da história, é impossível não nos espantarmos. Os trechos que vimos mostram que foi pela humilhação, submissão à vontade do Pai, e, finalmente, pela morte, que Jesus conquistou seu reino. O verdadeiro Rei sobre todas as coisas, o próprio Deus encarnado, escolheu entregar sua vida em favor dos seus súditos. Ao fazê-lo, era como se ele estivesse dizendo: “Ei, vocês que acham que o poder é conquistado pela força e se aproveitam do medo da morte que as pessoas têm, vocês estão errados! O verdadeiro poder vem do que eu acabei de fazer: servir até a morte. E para vocês que ainda temem a morte, não temam! Eu ressuscitei para vencê-la de uma vez por todas.” Foi assim que Jesus humilhou os idólatras do poder. Que verdade maravilhosa, meu irmão e minha irmã! Jesus venceu a morte não apenas para nos livrar do medo dela, mas para nos mostrar como o poder político e cultural realmente pode, e deve, ser exercido.
A melhor forma de exercer de maneira prática o poder que Deus nos deu no mandato cultural, e o poder político que temos como cidadãos, é, portanto, através de atos de serviço criativo em todas as áreas. Lembre-se: Jesus triunfou sobre os principados e potestades, sim, mas o fez na cruz. É através do serviço que fazemos o mesmo. E isso deve ser feito de forma criativa em todas as áreas, pois o ministério da reconciliação que nos foi entregue por Deus consiste em que ele “estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5.18-20). Podemos entender essa passagem em conexão com Colossenses 1.19-20: “Porque Deus achou por bem que, nele [em Jesus], residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas.” Portanto, em todas as áreas que vivemos e trabalhamos, exercemos poder político ao trabalharmos em favor da reconciliação daquele campo com Deus através de Cristo. Nosso trabalho é político à medida que em tudo o que fazemos proclamamos o verdadeiro rei. No fim das contas, obedecer a Cristo em todas as áreas é contribuir para a prosperidade da comunidade (Jr 29.4-7).
Outras formas práticas de se envolver com a política é através da oração (1Tm 2.1-4) e da participação mais direta nas decisões do governo, seja através do voto, da integração em órgãos e conselhos das mais diversas esferas etc. Seja como for, é urgente nos lembrarmos de que o papel do cristão na política não se limita aos meios comuns disponíveis a todos os cidadãos. Obviamente, não é menos que isso. Por isso, vote com consciência e responsabilidade e, na medida do possível, seja ativo na sua comunidade e se inteire de como as coisas têm sido conduzidas politicamente ali. Mas nunca se esqueça que a extensão do nosso compromisso corresponde à extensão da soberania do rei com o qual estamos comprometidos: a realidade como um todo.
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