Política como fé e prática: a relação do cristão com a política - Parte 3
- João Vitor

- 28 de set. de 2022
- 11 min de leitura
Atualizado: 20 de set. de 2023
A relação do cristão com as ideologias

Estamos nos aproximando das eleições de 2022, e este tem sido um período cada vez mais conturbado no nosso país. Com o aumento do acesso à informação e da polarização, os ânimos de todas as pessoas têm ficado mais acirrados. Se tivéssemos alguma garantia de que nossas discussões presenciais e virtuais são motivadas por boas informações e reflexão refinada, com certeza poderíamos ficar mais tranquilos. Contudo, infelizmente não parece ser este o caso. Quando não somos levados a opinar pela fake news mais fresquinha que acabou de chegar naquele grupo de WhatsApp, nossos debates se tornam mais feios que briga de foice devido à crueza, superficialidade ou ao erro franco de nossas ideias.
A coisa fica ainda mais complicada quando colocamos o cristão na equação, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, a parcela da população brasileira que se autodenomina “evangélica” — e, concomitantemente, o eleitorado evangélico — tem crescido de modo muito significativo nas últimas décadas. Nessa história, nós somos tanto os interessados na política quanto o alvo de interesse — e, por isso, da propaganda — dos candidatos a cargos políticos. Em segundo lugar, o cristão tem a clara responsabilidade bíblica de buscar e zelar pela verdade e pelo amor. Isso significa, no contexto das discussões políticas contemporâneas, opinar e conversar a partir de argumentos ponderados e bem embasados e com a mansidão e humildade modeladas pelo nosso Mestre.
Foi para contribuir com os cristãos nesse esforço que esta série de artigos foi pensada. A ideia é falarmos um pouco tanto sobre princípios básicos da relação do cristão com a política, como o seu envolvimento nesse campo, as ideologias e o papel do Estado, quanto sobre aspectos mais práticos dessa relação, como o voto e como buscar informações de qualidade. Estes textos foram elaborados a partir das anotações feitas para uma conversa entre os jovens da União de Mocidade Presbiteriana (UMP), num evento intitulado “Política como Fé e Prática”, e das ideias compartilhadas durante a discussão. Nossa oração e desejo é que estes apontamentos edifiquem o leitor e a leitora, produzindo, como alguém já disse, mais luz que calor.
Todos os textos bíblicos foram extraídos da Nova Almeida Atualizada (NAA), a menos que se indique o contrário.
Parte 3: A relação do cristão com as ideologias
Vimos até aqui que, a partir de uma perspectiva bíblica, a política, manifesta no poder cultural para conduzir a criação e a sociedade, foi criada por Deus como algo bom, mas foi corrompida pelo pecado, sendo, finalmente, redimida em Cristo, o verdadeiro rei que já reina e que estabelecerá seu reino plenamente quando retornar. Nessa nova configuração de coisas, nosso papel político como cristãos é proclamar Jesus Cristo, seu reino e sua autoridade sobre todas as áreas, principalmente através do testemunho e de atos criativos de serviço, seguindo o modelo proposto pelo próprio Senhor.
Neste artigo, o objetivo é conversarmos um pouco mais sobre a relação do cristão com as ideologias políticas. Muitas perguntas podem ser levantadas quando pensamos nesse assunto: o cristão deve ser de esquerda ou de direita? Aliás, o cristão pode abraçar alguma ideologia? Como o cristão deve enxergar o papel do Estado? A importância de falarmos sobre as ideologias vem da predominância destas na arena pública, principalmente nas redes sociais. É praticamente impossível não entrarmos em contato com opiniões e expressões ideológicas em posts, vídeos, artigos etc. E mesmo os “excêntricos” que não estão em nenhuma rede social, como verdadeiros “fumantes passivos”, acabam por experimentar indiretamente o ambiente tóxico delas em reuniões familiares e entre amigos. Assim, o cristão precisa estar preparado para identificar discursos ideológicos e ideologias específicas, não apenas com o intuito de saber “responder a todo aquele que pedir razão da esperança que vocês têm” (1Pe 3.15), mas também de não comprometer a pureza dessa mesma esperança no próprio coração.
Antes de mais nada, é preciso começar com um alerta importante: por mais comuns e difundidos que sejam, os rótulos “direita” e “esquerda” são, na melhor das hipóteses, dispensáveis, quando não completamente inúteis ou enganadores. De acordo com David T. Koyzis, existem três problemas com esses termos. O primeiro problema é que eles não têm um sentido único e aceito universalmente, uma vez que não fazem referência a assuntos atemporais, mas apenas aos que recebem atenção em determinadas épocas. Os conceitos políticos de “direita” e “esquerda” nasceram no período da Revolução Francesa para distinguir entre os monarquistas tradicionais, que defendiam a soberania do monarca (e que se sentavam à direita do orador na Assembleia Nacional Francesa), e republicanos, favoráveis à soberania popular (que se sentavam à esquerda do orador). Portanto, o critério era a postura em relação a quem pertencia o poder político.
Contudo, com o passar do tempo, conforme novas questões foram surgindo e atraindo maior atenção dos pensadores e do debate público, o critério para definir quem era de direita e de esquerda foi mudando. Em certos contextos, o ponto de discussão foi o poder da igreja institucional, com os partidos clericais sendo os de direita, e os anticlericais, de esquerda. Ao longo do século 20, o foco passou a ser a atitude em relação à igualdade social e econômica, com sociais-democratas e comunistas (esquerda) sendo favoráveis à maior igualdade, e liberais clássicos e fascistas (direita) adotando algum tipo de crença na desigualdade. Aliás, essa distribuição já demonstra, por si só, as dificuldades com a divisão esquerda-direita: coisas tão diferentes quanto a social-democracia e o comunismo foram colocados no mesmo saco, ocorrendo o mesmo com o liberalismo clássico e o fascismo. Portanto, criticar alguém por ser de esquerda ou de direita levanta a discussão num terreno muito instável, prejudicando a comunicação e a compreensão.
O segundo problema, relacionado ao primeiro, é que, por fazer referência a um critério em voga em um contexto específico, o espectro esquerda-direita é unidimensional. Ao favorecer determinado critério, ele dispensa outros critérios que podem ser tão ou mais importantes, muitas vezes não fazendo justiça aos posicionamentos de uma pessoa em tópicos complexos. Por exemplo, muitas pessoas mais velhas que se identificam como sendo de esquerda por defenderem maior igualdade econômica, o cuidado com os pobres e melhores condições para o trabalhador podem ser críticas ferrenhas das pautas morais e identitárias da nova esquerda, como as questões de aborto e de gênero. Existem propostas mais multidimensionais que são mais esclarecedoras e úteis por acomodarem um número maior de critérios (dê um Google na expressão “classificação bidimensional ideologias políticas” e veja as imagens que aparecem).
O terceiro problema com a divisão esquerda-direita é que ela mascara as questões religiosas que subjazem a todas as ideologias. Ao traçar uma descontinuidade muito rígida entre visões políticas, ela pode nos levar a enxergar um lado como o “vilão” e o outro como o “herói”, ignorando as coisas boas e más que toda posição política carrega. Essas coisas dependem, em última instância, da raiz religiosa que se encontra no coração das ideologias.
Aqui, entramos no cerne da nossa investigação. A meu ver, o principal trabalho sobre filosofia política já publicado no Brasil continua sendo Visões e ilusões políticas, de David T. Koyzis. Basicamente, o autor diz que toda ideologia é uma expressão do fenômeno religioso da idolatria. Isso porque toda ideologia elege algum aspecto da boa criação de Deus e o eleva acima de todas as coisas criadas, adorando-o como o próprio Deus. O liberalismo faz isso com a soberania individual; o conservadorismo, com as tradições; o nacionalismo, com a nação, ou comunidade ética; o socialismo, com a classe econômica, e assim por diante. Ao absolutizar um aspecto da criação, o ideólogo político não somente afronta a soberania transcendente e a santidade do próprio Deus, mas atenta contra a integridade da sua boa criação, ordenada para funcionar harmoniosamente sob o cuidado dos seres humanos e sob a autoridade última do próprio Senhor.
Um problema ainda mais profundo com as ideologias é que, apesar de diferirem quanto a qual elemento da criação deve ser elevado à categoria de Deus, todas elas compartilham da mesma raiz religiosa: a crença secular na autonomia humana. Para Koyzis, todas as ideologias políticas “fazem parte da mesma família espiritual”, pois elas creem que “os seres humanos determinam o curso de sua própria vida sem qualquer referência à vontade de Deus” (p. 39). Elas podem diferir quanto a qual manifestação da humanidade deve ser adorada, o que redundará na criação de instituições diferentes, na elaboração e promulgação de leis diferentes e, de forma geral, em modos distintos de conduzir a sociedade e a cultura. Mas, no frigir dos ovos, todas as ideologias adoram o ser humano.
Por isso, o cristão não pode se identificar completamente com nenhuma ideologia. Ao fazê-lo, ele corre o risco de ser associado a ideias ou pessoas que, apesar de defenderem coisas superficialmente louváveis, partem de pontos de vista espiritualmente antitéticos à “cidade de Deus.” Isso não significa que o cristão não pode se identificar com bandeiras que ele considera importantes e que são promovidas mais fortemente por uma ideologia ou outra. Se a defesa da família é uma pauta reconhecidamente conservadora, o cristão pode lutar lado a lado de conservadores (de quaisquer matrizes religiosas) em favor da família, sem comprometer sua adoração exclusiva a Deus. Nesse sentido, cristãos podem até se declarar conservadores, liberais ou socialistas. A caridade cristã e a exigência positiva do nono mandamento de dar ao próximo o benefício da dúvida nos compelem a tentar entender, com a mente aberta, o que nosso irmão quis dizer ao se expressar dessa forma.
No entanto, perceba que isso deve ser feito com o maior cuidado e sabedoria possíveis, para que o interlocutor entenda que esse posicionamento vem de preferências políticas particulares e que não é uma consequência direta e lógica da fé cristã professada por ele. A política é complexa, e cada cristão, a partir de seus próprios estudos e do uso disciplinado e sábio da razão, tem a liberdade de consciência de apoiar o que achar que é melhor para o país. Mas ao se identificar como um conservador, um liberal ou um socialista, o cristão precisa estar ciente de que ele corre o risco de comprar todo o “pacote” ideológico, com suas dimensões positivas e negativas. E não foi para militar a favor de uma corrente ideológica que Jesus nos chamou. Como ensina Guilherme de Carvalho, o mundo oscila entre um ponto e outro do espaço político. A depender do que nós, como cristãos, defendemos, nós podemos ser taxados de conservadores, liberais, comunistas, fascistas e assim por diante. Mas nosso compromisso continua sendo com a Bíblia e com a sã doutrina.
O último tema que gostaria de tratar neste artigo tem a ver com o papel do Estado. Escolhi falar disso num texto sobre ideologias políticas porque, em meu juízo, a função do Estado é uma das questões mais controversas e definidoras do que constitui uma ideologia. Para falar disso, precisamos nos voltar para o texto clássico a respeito da instituição do Estado, a saber, Romanos 13.1-7.
No primeiro versículo, lemos que “não há autoridade que não proceda de Deus, e as autoridades que existem foram por ele instituídas.” Isto ecoa o que vimos no primeiro texto desta série: a autoridade política foi criada por Deus, e, como tudo o que foi criado por Deus, ela é estruturalmente boa. A autoridade não é só um princípio divino. Deus imbui pessoas e instituições de autoridade para ordenar a criação, em particular as sociedades humanas, cumprindo seu bom propósito para com elas. É por isso que “aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus, e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação” (v. 2). Opor-se à autoridade é opor-se à ordem criacional do próprio Deus.
No versículo 4, Paulo diz que “a autoridade é ministro de Deus para o seu bem.” É por isso que aqueles que fazem o bem não precisam temer às autoridades (v. 3), ao passo que aqueles que fazem o mal devem temê-la, uma vez que ela “traz a espada [...] para castigar quem pratica o mal” (v. 4). Numa situação ideal, o Estado recompensa o bem e pune o mal, agindo como ministro de Deus. Dessa forma, os justos podem viver tranquilos, os malfeitores são refreados e a sociedade prospera em harmonia. Mas e quando a situação ideal não se concretiza? Isto é, o que acontece quando o Estado faz justamente o contrário, desmotivando o justo ao condenar suas atitudes e favorecendo os injustos e violentos? Talvez seja esta a situação mais comum num mundo caído e corrompido pelo pecado. Ao longo de toda a história, através dos métodos mais diversos, parece que o padrão moral do Estado é o inverso do que Paulo prediz aqui.
Dizer que o apóstolo estava sendo muito idealista ou utópico é perder o sentido teológico do texto. Na verdade, o que vemos aqui é a natureza moral da função e do poder estatal. Em outras palavras, a autoridade do Estado provém não do poder que ele usa, mas do seu papel defensor e promotor do bem, tanto dos indivíduos quanto da comunidade. O Estado deve ser compreendido como uma comunidade política organizada em nome da justiça pública. Se ele exerce poder, mas não serve ao bem público, o Estado não está exercendo sua missão dada por Deus:
Qual é, então a fonte de autoridade governamental? O cristão deve afirmar que a fonte primária é o próprio Deus, o que é correto. Todavia, isso não significa que toda forma existente de governo e todo aquele que ocupa um cargo governamental têm o selo divino de aprovação. Significa, isto sim, que Deus quis que existisse neste mundo uma instituição apta a desempenhar uma tarefa muito especial: fazer justiça entre a diversidade de indivíduos e comunidades. Assim, a autoridade do governo está inevitavelmente ligada à sua missão jural, que é uma característica intrínseca de sua constituição (David Koyzis, Visões e ilusões políticas, p. 300).
O Estado recebe autoridade para proteger o bem. No âmbito público, isso significa promover o bem comum e a justiça pública. A concepção clássica de justiça é “dar a cada um o que lhe é devido.” Biblicamente, podemos dizer que uma sociedade justa é aquela em que predomina a shalom de Deus, isto é, onde as várias esferas da sociedade humana (indivíduos, famílias, igrejas, escolas, empresas e outras associações) funcionam e se desenvolvem de modo equilibrado e proporcional, cumprindo sua missão específica e diferenciada ordenada pelo próprio Deus. É isto que o Estado deve proteger e promover.
Podemos divisar pelo menos duas implicações a partir dessa discussão. A primeira é que o bem comum e a justiça pública são mais importantes ou primordiais que o Estado. Lembre-se de que antes mesmo da formação da menor comunidade política, sob a condução da forma mais primordial de Estado, Deus declarou que sua criação era muito boa. Como o nosso compromisso é em primeiro lugar com o rei Jesus Cristo e com o seu reinado, nossos esforços devem ser compatíveis com isso. A conclusão prática é que nossa preocupação principal deve estar em defender e fazer o bem, independentemente de quem está no poder e como tais pessoas ou grupos estão agindo. Essa verdade serve para reforçar o que já discutimos, quanto ao foco da obra cristã recair sobre o testemunho público, e não primariamente sobre a conquista dos espaços políticos.
A segunda implicação é que existe um componente situacional no papel do Estado, uma vez que o bem que ele precisa defender em certa época e lugar pode ser diferente do bem que ele precisa defender em outra época e lugar. Um exemplo pode ajudar a esclarecer o que tenho em mente. A agenda econômica da equipe governamental de um país pode seguir um programa liberal de não interferência nos mercados e no mecanismo de preço. No entanto, no caso de uma catástrofe natural que afete milhares de pessoas, especialmente os mais pobres, o Estado pode considerar por bem determinar um teto para os preços de itens essenciais à sobrevivência, para evitar que a fixação por meio da oferta e demanda jogue os preços a níveis estratosféricos, como vimos acontecer no caso de máscaras e álcool gel nos primeiros meses da pandemia de COVID-19. Ainda que existam bons argumentos para evitar a ação econômica do Estado mesmo nessa situação, podemos ver claramente como tal ação é justificável.
Portanto, é muito difícil definir uma “visão bíblica para o Estado” que vá além dos princípios gerais de promoção da justiça pública traçados acima. Cada ideologia irá propor um papel para o Estado que seja compatível com aquilo que ela toma como sendo o bem mais precioso a ser defendido, e o cristão não precisa se comprometer com nenhum modelo estanque de Estado, seja ele o Estado liberal, o Estado socialista, o Estado empreendedor o qualquer outro. Na verdade, esta última implicação segue o tom conciliatório desta série de artigos como um todo. É imprescindível que entendamos, de uma vez por todas, em favor da paz social e, principalmente, da unidade da igreja, que cristãos sinceros, no melhor uso da sua sabedoria, em oração e temor diante de Deus, podem ter visões a respeito da política, de programas de governo, do papel do Estado e de como podemos contribuir para a prosperidade do nosso país que são diferentes, legítimas. Não cabe a nenhum de nós condicionar a genuinidade da fé dos nossos irmãos à defesa de determinada ideologia, pauta, programa, partido ou candidato. Veremos isto mais a fundo no próximo artigo.


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