Política como fé e prática: a relação do cristão com a política - Parte 4
- João Vitor
- 29 de set. de 2022
- 11 min de leitura
Atualizado: 20 de set. de 2023
Como o cristão (não) deve votar

Estamos nos aproximando das eleições de 2022, e este tem sido um período cada vez mais conturbado no nosso país. Com o aumento do acesso à informação e da polarização, os ânimos de todas as pessoas têm ficado mais acirrados. Se tivéssemos alguma garantia de que nossas discussões presenciais e virtuais são motivadas por boas informações e reflexão refinada, com certeza poderíamos ficar mais tranquilos. Contudo, infelizmente não parece ser este o caso. Quando não somos levados a opinar pela fake news mais fresquinha que acabou de chegar naquele grupo de WhatsApp, nossos debates se tornam mais feios que briga de foice devido à crueza, superficialidade ou ao erro franco de nossas ideias.
A coisa fica ainda mais complicada quando colocamos o cristão na equação, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, a parcela da população brasileira que se autodenomina “evangélica” — e, concomitantemente, o eleitorado evangélico — tem crescido de modo muito significativo nas últimas décadas. Nessa história, nós somos tanto os interessados na política quanto o alvo de interesse — e, por isso, da propaganda — dos candidatos a cargos políticos. Em segundo lugar, o cristão tem a clara responsabilidade bíblica de buscar e zelar pela verdade e pelo amor. Isso significa, no contexto das discussões políticas contemporâneas, opinar e conversar a partir de argumentos ponderados e bem embasados e com a mansidão e humildade modeladas pelo nosso Mestre.
Foi para contribuir com os cristãos nesse esforço que esta série de artigos foi pensada. A ideia é falarmos um pouco tanto sobre princípios básicos da relação do cristão com a política, como o seu envolvimento nesse campo, as ideologias e o papel do Estado, quanto sobre aspectos mais práticos dessa relação, como o voto e como buscar informações de qualidade. Estes textos foram elaborados a partir das anotações feitas para uma conversa entre os jovens da União de Mocidade Presbiteriana (UMP), num evento intitulado “Política como Fé e Prática”, e das ideias compartilhadas durante a discussão. Nossa oração e desejo é que estes apontamentos edifiquem o leitor e a leitora, produzindo, como alguém já disse, mais luz que calor.
Todos os textos bíblicos foram extraídos da Nova Almeida Atualizada (NAA), a menos que se indique o contrário.
Parte 4: Como o cristão (não) deve votar
Nos artigos anteriores, trabalhamos um pouco a dimensão mais abstrata ou teórica da relação do cristão com a política, passando pela perspectiva bíblico-teológica do poder e do envolvimento do cristão na política e pelas ideologias e o papel do Estado. Esse passo inicial é fundamental para que agora, ao entrarmos nos aspectos mais práticos da participação do cristão na política, possamos pensar com mais rigor e embasamento bíblico. Infelizmente, a questão do voto — assunto deste texto — é geralmente tratada de maneira impensada e desrespeitosa, e o desejo piedoso de lutar pelo que é certo e defender a verdade dão lugar à ânsia controladora, a meias-verdades, a falsas certezas e, o que é pior, ao farisaísmo.
É interessante notar, desde o início, que a maneira cristã de votar é caracterizada muito mais negativamente que positivamente, isto é, muito mais pelo que não deve ser feito do que pelo que deve ser feito. Em certo sentido, o cristão tem os mesmos direitos e responsabilidades cívicas do não cristão: seu voto é individual e secreto; ele tem a liberdade, numa sociedade democrática, de votar de acordo com a própria consciência individual; caso decida votar, ele deve fazê-lo de modo consciente e pensado, visando o bem comum; faz parte da virtude cívica o diálogo honesto e respeitoso quanto a preferências políticas, e assim por diante.
Assim, mesmo quando consideramos os deveres de não cristãos, percebemos que a liberdade é um fator de peso, por mais polarizado e intolerante que o debate público possa ser. No caso do cristão, ironias à parte, a liberdade é ainda mais imperativa. Um dos ensinamentos mais importantes da Reforma Protestante foi a liberdade que o cristão tem de seguir sua consciência, uma vez que somente Deus, através das Escrituras, é que pode apelar a ela. Como nos ensina a Confissão de Fé de Westminster (CFW):
Só Deus é senhor da consciência, e ele a deixou livre das doutrinas e mandamentos humanos que, em qualquer coisa, sejam contrários à sua palavra ou que, em matéria de fé ou de culto, estejam fora dela. Assim, crer em tais doutrinas ou obedecer a tais mandamentos como coisa de consciência é trair a verdadeira liberdade de consciência; e requerer para elas fé implícita e obediência cega e absoluta é destruir a liberdade de consciência e a mesma razão (CFW, cap. XX, art. II).
Alguém poderia contra argumentar: “Isto está correto, mas o artigo proíbe exigir fé e obediência a coisas que sejam contrárias à palavra ou que estejam fora dela. E votar no candidato X é claramente a única coisa que a palavra permite fazer.” A CFW também tem uma resposta para isso:
Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas (CFW, cap. I, art. VI).
O que a Confissão nos ensina, basicamente, é a doutrina da perspicuidade das Escrituras: existem coisas que estão claramente expostas nas Escrituras, ou que podem ser logicamente deduzidas delas, de modo que todo cristão, com o auxílio do Espírito e independentemente do grau de instrução, pode compreendê-las.
Repare, porém, em duas ressalvas importantes do artigo. A primeira é a de que o que está “expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela” é “todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem.” A segunda ressalva é a de que existem certas “circunstâncias [...] as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas.” Será, diante dessas palavras, que podemos dizer com tanta certeza assim que a Bíblia exige que o cristão vote em determinado candidato ou candidata? O pulo do gato é justamente saber até que ponto a Escritura demanda certa atitude de todos os cristãos e até que ponto ela silencia ou não é clara, situação em que passamos a entrar num terreno perigoso caso insistamos em exigir dos nossos irmãos fé e obediência a “novas revelações do Espírito” e/ou “tradições dos homens.”
Tim Keller pode nos ajudar a solucionar esse imbróglio. Num artigo intitulado Justice in the Bible [Justiça na Bíblia], ele diz: “A justiça bíblica não é, em primeiro lugar, uma lista ou um conjunto de regras e diretrizes. Ela está firmada no próprio caráter de Deus e é fruto desse caráter, que nunca é menos que justo.” Para ele, a justiça bíblica é caracterizada por generosidade radical, igualdade universal, defesa significativa e transformadora dos pobres e responsabilidade corporativa e individual. Perceba que, diferente do que pensam os relativistas, existe um padrão de justiça bíblica. Esse padrão, contudo, nos dá mais um quadro de referência para discutir políticas públicas que respostas claras e específicas para cada tema em debate.
Tomemos como exemplo a seguinte questão: a melhor forma de cuidar do pobre é com menos Estado ou mais Estado? Dois cristãos consideram que proteger e ajudar o pobre é um imperativo — e o fazem muito bem, porque esta é, de fato, uma exigência do padrão bíblico de justiça. Mas ambos podem legitimamente diferir quanto a isso ser mais facilmente alcançado com a maior participação do Estado na economia, através de programas de transferência de renda e de políticas de bem-estar social, por exemplo, ou com a mínima interferência do Estado, de modo que os mercados sejam capazes de operar, gerando maior inovação, crescimento e, consequentemente, alívio da pobreza. Existem bons argumentos dos dois lados, e ambos os nossos irmãos estão justificados em apoiar politicamente um candidato que tomará medidas que eles considerem melhor para a sociedade. O que é mais importante é que ambos estão buscando agradar o Senhor de forma sincera.
O ponto crucial é que a Bíblia é bem mais clara ao falar do esqueleto básico da justiça que dos métodos políticos específicos que devem ser usados para aplicar essa justiça em cada contexto. Diante disso, os cristãos têm liberdade de escolher um candidato de acordo com sua própria consciência, e é falta de caridade constranger nossos irmãos e irmãs a votarem em um ou outro candidato ou partido sob o pretexto de que “essa é a única opção para o crente.” Como afirma Robert D. Golding:
O cristão é livre, nos casos em que sua consciência não é compelida pelas Escrituras, para exercer sabedoria em oração. [...] O cristão é livre para votar, mas ele não é constrangido. Ele deve prestar atenção, pensar, orar e buscar determinar qual é a melhor forma de ele cumprir a lei de Cristo. Pode ser votando em um candidato honesto, um pervertido, ou mesmo não votando. Uma coisa que os cristãos não devem fazer é proscrever ou prescrever de forma legalista ações políticas específicas que não estão expressamente condenadas ou comandadas na Escritura (Robert D. Golding, “Give Honor and Vote? A Reflection on the Christian’s Voting Conscience and Romans 13.1-7”, Themelios, v. 47, n. 2, 2022, p. 324).
Logo, não existe “voto cristão”, no sentido de um ou mais candidatos ou partidos serem “permitidos” e outros candidatos ou partidos serem “proibidos”. Infelizmente, muitos evangélicos utilizam a preferência política como um teste para a genuinidade da fé cristã dos outros. Para eles, os frutos que demonstram se a árvore é boa ou má podem ser resumidos às teclas que serão pressionadas nas urnas eletrônicas. Essa postura cheira não só a legalismo, mas a puro farisaísmo. Não foi esta a acusação de Jesus contra eles em Mateus 23.4: “Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens”? São obrigações indevidamente acrescentadas à fé e submissão simples que o servo de Cristo deve somente a ele.
Outro indício de que a atitude política de muitos cristãos hoje é farisaica pode ser encontrada no evento narrado em Mateus 15.1-20 e Marcos 7.1-23. Os fariseus e os escribas entram numa disputa com Jesus em torno da necessidade ou não de lavar as mãos antes comer, uma exigência dentre tantas outras encontradas na “tradição dos anciãos.” Ao confrontarem Jesus perguntando por que seus discípulos não a observavam, Jesus retruca, citando Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos humanos” (v. 6-7). Ele reforça, ainda, o erro de rejeitar o mandamento de Deus em favor da tradição humana (v. 8-9).
De que modo esse texto ressoa com o que temos visto nas rodas cristãs de conversas sobre política hoje em dia? Uma coisa é eu dizer que alguns irmãos estão fazendo exigências descabidas a outros; outra coisa, completamente diferente, é eu duvidar da fé do meu irmão que faz isto, o qual, mesmo agindo de forma equivocada, tem o desejo sincero de agradar a Deus. Estaria eu, através desse trecho dos Evangelhos, chamando esses irmãos de hipócritas?
De forma alguma. O motivo pelo qual, a meu ver, esse texto é tão pertinente é que, no afã de defender a própria visão política, muitos irmãos estão passando por cima de virtudes cristãs claramente ordenadas na Escritura. Virtudes como o amor, a mansidão, a humildade, a fraternidade, a paz, o domínio próprio, a paciência, a bondade, e muitas outras, são exigências bíblicas explícitas (Rm 12.9-21; Gl 5.22-26; Ef 4.25-5.2; Fp 4.8), assim como os vícios e desvios de conduta correspondentes são claramente proibidos (Rm 1.28-32; Gl 5.19-21; Ap 22.14-15). No entanto, de modo flagrantemente parecido com outra condenação de Jesus, muitos hoje “coam um mosquito, mas engolem um camelo” (Mt 23.24), o mosquito sendo a preferência do meu irmão pelo “meu malvado [político] favorito”, e o camelo, a minha falta de amor e humildade ao exigir algo que a Bíblia não exige, e a minha falta de mansidão ao brigar e vociferar por questões secundárias. Como David French afirma:
O “que” da política (as políticas específicas que apoiamos) mudarão. Com frequência, elas serão objeto de debate. Nós teremos respostas incertas para questões complexas. Mas o “como” da política — as virtudes que demonstramos quando discutimos — não mudam. O fruto do Espírito é atemporal. Não há emergência política que justifique o rompimento com esses valores centrais (David French)
Para reforçar: a forma como a justiça bíblica é aplicada e transformada em leis pelo Estado é muito menos específica e muito mais complexa e multifacetada que as instruções quanto às virtudes bíblicas, que são muito mais precisas e detalhadas. Temos os frutos do Espírito e recomendações para suportarmos uns aos outros em amor. Na questão do voto, isso significa que não podemos deixar nossas concepções políticas atropelarem nossa obrigação de tratar as decisões dos nossos irmãos com caridade. O cristão pode votar em candidato A ou B, ou mesmo em branco ou nulo (Francisco Razzo tem um ótimo texto sobre isso). O voto não é um endosso automático do caráter ou das práticas do incumbente, e nem da visão de mundo no qual seu partido ou seu programa parecem se embasar. Votar é escolher o candidato que, de acordo com minhas concepções políticas, prestará o melhor serviço público em favor do bem comum.
Mas isso não é correr o risco de ter nossas igrejas fechadas, de aumentar a violência, a pobreza e o desmatamento, de aceitar a ideologia de gênero nas escolas, de favorecer o neoliberalismo e os mais ricos etc.? É claro que é. Tomar decisões num mundo caído é correr todo tipo de risco, e com o voto não é diferente. O cristão é o tipo de pessoa que mais deveria ter consciência de que colocar cristãos no executivo, no legislativo e no judiciário, apesar de desejável, não vai frear o crescimento do joio na seara do reino de Deus.
Meu irmão e minha irmã, preste atenção: as coisas vão piorar. A Escritura nos garante isso. Um pouco de boa escatologia nos alerta para o fato de que escolher candidatos para o ofício político é escolher quem vai comandar um mundo que caminha para o julgamento. Nosso papel continua sendo o mesmo, independentemente de quem vai ocupar o Palácio do Planalto e o Congresso a partir do ano que vem: orar pelo nosso país e pelas autoridades, cobrar a conduta correta delas, defender a esperança que há em nós onde quer que estejamos, e, acima e a antes de tudo, cuidar da igreja e sofrer em nome de Cristo. As leis se tornaram mais liberais ou opressivas? Nós continuamos a pregar as verdades éticas da Escritura. A democracia acabou? As igrejas foram fechadas? A perseguição aos cristãos e a dissidentes políticos está correndo solta? Nossos irmãos no Afeganistão, na Coreia do Norte, na Somália, na Líbia, no Iêmen e em muitos outros países (confira o ranking da Portas Abertas) estão passando por isso há décadas, e eles têm nos ensinado como: através do testemunho cristão perseverante em meios às lutas. Não foi isso que vimos Jesus fazer dois textos atrás?
O que nós não podemos fazer, de maneira nenhuma, é comprometer os valores bíblicos centrais do amor e da unidade da igreja (Ef 4.2-3) em nome de um suposto Messias ou de uma suposta agenda de implementação do reino pela via política. Cacau Marques disse algo muito interessante: “Simão, o Zelote, e Mateus, o publicano, estavam juntos na última ceia. Se sua ceia não suporta diversidade de opinião política, Jesus não faz parte dela.” Simão e Mateus estavam em extremos opostos do espectro político da época. Mas ambos estavam unidos sob o rei que entregou sua vida para derrubar o muro da inimizade (Ef 2.13-16). Parafraseando Gálatas 3.28 (veja também Cl 3.11), não há esquerdista nem direitista, conservador nem progressista, socialista nem capitalista, liberal nem estatista, pois todos são um em Cristo Jesus.
Comments